domingo, 13 de setembro de 2015

Capítulo XVIII



Acordou. Pingos grossos da chuva que caía confundiam-se com os cascos dos cavalos nos paralelepípedos da rua. Uma sombra lhe tapou a boca e surgiu, então, um dedo indicador pressionando seu lábio em sinal de silêncio. Era a Nova Passageira.
Como chegara ali e em que circunstância viera a encontrar a Pequena Ladra, isso não vem a importar. Interessa apenas que ela estava ali. A mocinha abraçou-lhe em agradecimento - um ato de afeto não costumeiro. Uma figura conhecida que poderia lhe ajudar. Olharam-se.
- O que você está fazendo aqui, mocinha? - perguntou a Nova Passageira.
- Como você conseguiu me olhar?
- Por que não conseguiria? - devolveu a pergunta, risonhamente.
- Vai me ajudar a sair daqui? Não vaideixar que me peguem, né?
- Quem sabe a gente não procura o Homem Cego antes?
- Não quero ver ele. Tive um sonho com ele.
- E?
- E sempre que eu sonho com alguém, alguma coisa acontece. Não posso mais ver ele.
- Mocinha, ele já está cego e sem família. Nem a morte pode ser pior que isso. Vamos procurá-lo, está bem?
- Como foi que você conseguiu me olhar?
Fingindo não ter escutado a pergunta da Pequena Ladra, a Nova Passageira ajudou-a a levantar e a sair do guichê. Ninguém poderia vê-las; por mais que fossem crianças, a sociedade não aceitava aqueles que dormissem em lugares públicos.
Ambas aproveitaram a chuva para lavarem o rosto e as mãos. Então, com grandes sorrisos, a rapariga levou a mocinha até uma padaria.
- Dois pães com manteiga! - pediu a Nova Passageira.
- Como iremos pagar? - cochichou a Pequena Ladra.
A Nova Passageira apenas sorriu de canto de boca, sem olhar para a Pequena. Comeram enquanto escorriam em desenhos abstratos as gotas da chuva. Ambas queriam pegar o trem e ir para qualquer lugar, embora não admitissem em voz alta. Os segredos da Pequena Ladra poderiam ser os mesmos da Nova Passageira, mas jamais seriam amigas a ponto de se confiarem.

Mesmo a Nova Passageira tendo pago a refeição que lhe lembrava os tempos em que fazia parte de uma família, a Pequena Ladra não gostava daquela menina de cabelos morenos: lhe irritava a presença ininterruptamente feliz. Ela havia lhe salvado, mas jamais poderia arrancar de sua pele o beijo que Xaphan lhe dera, ou descolar de sua retina o sonho que tivera com o Homem Cego. Na verdade, só gostaria de entender como ela conseguira olhar tão fundo nos seus olhos roxos e permanecer ao seu lado.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Capítulo XVII


De repente havia luz e um céu sem nuvens capaz de fornecer sombras sólidas a todos os seres munidos de alma. Os cabelos da Pequena Ladra ousaram aparecer por trás do capuz sujo. Ela os prendeu enquanto notava que estava sozinha naquele lugar tão doce quanto sua infância. Colocou as mãos nos bolsos, instintivamente, à busca das chaves - para rememorar que deveria continuar com seus furtos -, mas nada encontrou.
Assustada, a garganta trancou o choro que suplicava surgir. Tantas chaves que conseguira e, agora, como saberia se não havia perdido a oportunidade de encontrar a peça perfeita para lhe livrar da maldição de carregar as engrenagens? Ajoelhou-se perdida, tentando manter a calma.
Apareceu o Homem Cego para então dizer-lhe:
- Mocinha, você não tem motivo algum para querer chorar. Veja como o céu está lindo!
- Como o senhor sabe que o céu está lindo se o senhor é cego?
Em risos, e arrumando a cartola na cabeça, respondeu-lhe:
- Eu era cego, mocinha. Eu era... Agora consigo ver você com tanta nitidez quanto o sol te queima a bochecha!
Sem nada entender, a Pequena Ladra olhou então para suas mãos e elas já não possuíam marcas. Estavam lisas, brancas, limpas, sem nenhum desenho colorido: saudáveis. Não conseguia entender. Impulsivamente, pegou o Homem não mais Cego pelo braço e questionou-lhe:
- Qual a cor dos meus olhos?
- A cor de sempre, mocinha. Roxos.
E uma dor intensa foi afundando as têmporas da menina. Dezenas de mulheres vestidas de branco, cheirando a sangue fresco, mortas, apareceram ao seu redor. Sorriam para a aparição da Mulher Ruiva, por trás da Pequena Ladra, de mãos dadas com a jovem de cabelos castanhos, que reclamava sua pulseira com as chaves.
A Pequena Ladra pôs-se a correr da forma que conseguiu, porém, quanto mais força desprendia para correr rapidamente, mais lento era seu movimento. O ar começou a faltar-lhe e a cabeça pulsava violentamente. Já não conseguia enxergar com precisão... Apenas via as veias voltando a formar-se em forma de engrenagens pela sua pele...

Acordou. Pingos grossos da chuva que caía confundiam-se com os cascos dos cavalos nos paralelepípedos da rua.

domingo, 26 de abril de 2015

Capítulo XVI


O silêncio na cidade era imenso. Podia ouvir-se a quadras de distância a batida do solado bruto da Pequena Ladra correndo pelas ruas sujas, buscando a estação de trem. Já era quase noite feita e nem uma única alma era avistada por ali. O medo da escuridão, de permanecer eternamente naquele lado, sem jamais rever a faísca dourada do Sol na córnea...
Chegando na estação, a Pequena Ladra escondeu-se atrás do guichê de venda de bilhetes. Não poderia deixar que a Mulher Ruiva a encontrasse em uma situação desprotegida. Já não era mais opção tentar combatê-la.
Pôs-se a chorar. Sua cabeça de menina não conseguia digerir tudo o que estava acontecendo nos últimos dias. Embebida em sono, cansaço e algumas lágrimas restantes, um apito fez-se vivo. Com os dedos sujos, a Pequena Ladra limpou os olhos úmidos e ergueu-se devagar, tentando não fazer barulho.
Por entre as frestas da mesa do guichê de venda de bilhetes, a Pequena Ladra viu que apenas um vagão do trem havia parado. Demorava-se a abrir a porta. Uma moça com vestes brancas aguardava para embarcar. Na face daquela mulher, toda a serenidade de quem entende que vai ter que seguir um destino específico.
A porta abriu-se e o maquinista sorriu. Em passos lentos e hipnóticos, a moça com vestes brancas adentrou no vagão e desapareceu na escuridão do mistério que era aquele momento. A Pequena Ladra teve vontade de gritar, de implorar para que aquela moça não buscasse aquele fim para ela, mas não pôde. Se gritasse, mocinha também teria que entrar no vagão e seguir o mesmo rumo. Xaphan já havia lhe marcado...

Sentou-se, novamente, escondida atrás do balcão e olhou para suas mãos. Parecia-lhe que as engrenagens haviam sumido, mas sabia que esse era apenas seu desejo e a escuridão ajudava a proporcionar essa miragem deliciosa que era não ser mais doente; voltar a ter os olhos castanhos. Adormeceu.

domingo, 12 de abril de 2015

Capítulo XV


A Nova Passageira caminhava sorridente e cantarolante, com a cabeça nas nuvens. Nem percebera que, ao seu lado, a Pequena Ladra deixava cair pelo caminho gotas de lágrimas grossas. Gotas para satisfazer a alegria de Xaphan.
Pararam as duas, de repente.
- Aonde é mesmo? - perguntou a Nova Passageira.
- Eu achava que era por aqui...
- Por que você está chorando? - perguntou, abaixando-se.
A Pequena Ladra nada disse, mas olhou intenso dentro dos olhos castanhos da outra menina. Foi suficiente para que a Nova Passageira parasse de sorrir e transformasse o seu semblante.
- Por que são roxos?
- Não eram.
- Por que são?
- Não sei.
- Sua mãe já lhe levou ao médico?
- Minha mãe morreu. - mentiu a mocinha.
- De quê?
Não respondeu. Não respondeu e retomou o passo. O “tác-tác” das botas era tão forte e tão firme que qualquer um diria que ela sabia exatamente para onde estava indo. A Nova Passageira, por sua vez, não a acompanhou. Estava rígida, agachada e com uma expressão de horror. E assim ficou.
A Pequena Ladra já não chorava, nem sequer pensava em Xaphan. Dobrara à esquerda na primeira esquina e logo escutou o barulho do trem. Foi o suficiente para retomar seu foco. Ademais, ria baixinho, com alguns leves picos de tosse: havia pegado a chave daquela menina morena doida e estava ansiosa para testar. Deveria ser essa a chave que a libertaria das engrenagens!
O céu avermelhado petrificava o interior da mocinha de medo. A respiração estava cada vez mais difícil de manter compassadamente. Parou por alguns segundos, descansou com as mãos nos joelhos. A cabeça baixa tentando recuperar as forças daqueles anos todos.
De repente, um som inconfundível fez a coluna da Pequena Ladra se endireitar. Uma fumaça branca riscava o arrebol à noroeste mostrando exatamente que direção tomar. A estação de trem estava ali e logo iria voltar para os trilhos onde costumava dormir, em meio aos lagartos e à vista das casas abandonadas com vidros engordurados.

Começou a correr. As pessoas da cidade, então, finalmente, retomaram seus movimentos. Como se nunca tivessem sido estátuas, a vida continuava e a Pequena Ladra estava correndo para voltar a viver o futuro, distante daqueles todos, buscando preocupar-se apenas com as chaves.

domingo, 5 de abril de 2015

Capítulo XIV



Caminhando perdida, duas mãos pousaram bruscas nos ombros da Pequena Ladra. Tentou correr, mas não conseguiu. Uma voz gélida surgiu pegajosa na orelha direita da mocinha para lhe dizer:
- Estou te cuidando. Preciso de você.
Marcando a mocinha com as unhas, aquele ser beijou-lhe a nuca, abaixo da orelha. A Pequena Ladra começou a chorar. Sabia que esse era o sinal. Fugir da Mulher Ruiva não adiantara de nada e agora ela estava batizada por Xaphan.
- Você sabe bem que tem uma saída, Pequena Ladra. Está na hora de você deixar de ser menina! Juntos, dominaremos os Sete Príncipes. Você sabe o que fazer.
Não deixando rastros de sua existência, o anjo caído desapareceu. A Pequena Ladra tentou respirar com calma, mas sentia cada vez mais dificuldade de manter sua saúde. Talvez devesse se juntar àquela situação... Talvez não devesse. Já não sabia mais se havia motivo de seguir fugindo, de conseguir encontrar a chave correta...
Precisava encontrar o Homem Cego e contar-lhe!... Ou permanecer muda. Certamente não seria correto envolver aquele homem bom à profundeza podre da marca que agora carregava.
Finalmente, então, a mocinha conseguiu se mover. Deu dois passos à frente e parou. Olhou para a esquerda e as pessoas estavam paradas, como que hipnotizadas. Igual às pessoas que aguardavam o trem partir na estação. Olhou para a direita e não havia ninguém. O único movimento vinha do balão no céu.
Cutucou uma mocinha qualquer e percebeu, depois, que era a Nova Passageira. Um tanto aliviada, a Pequena Ladra tentou acordá-la daquele estado congelado, mas nada conseguiu. Segurou a sua mão e começou a andar. Inexplicavelmente, a Nova Passageira seguiu caminhando junto.
- Vamos voltar para a estação? Vamos... Eu te levo... Vamos!

Um silêncio afrontador mergulhava em fagulhas dentro dos ouvidos da Pequena Ladra. Ela ainda não havia conseguido parar de chorar. Precisava encontrar o Homem Cego. Queria rever a sua mãe...

domingo, 22 de março de 2015

Capítulo XVIII


Quando o Homem Cego começou a gritar que não se importava e que não queria saber, a menina já estava longe, correndo em fuga. Apenas os olhos verdes da Mulher Ruiva alcançavam o distanciamento.
A Pequena Ladra, novamente, apenas parou de correr quando suas pernas fraquejaram. Anoitecia e ela não fazia ideia de onde estava. Desconhecia a cidade, mas estava intrigada com tanta novidade.
Sentou-se, com muita dificuldade para respirar, e escondeu o rosto dos que ali passavam. Viu em suas mãos o desenho violáceo das engrenagens que eram suas veias. O desenho cada vez mais forte, mais evidente. Tinha raiva de si. Se suas mãos estavam daquele jeito, seu rosto deveria estar também. E quanto mais escuro os traços das engrenagens do seu rosto, mais as pessoas a condenariam por doente.
Precisava encontrar a chave, pensava... A chave que abriria a porta das engrenagens de sua pele e que a libertariam daquele estado. Tosse. Talvez, assim, seus olhos deixassem de ser roxos... Tosse. Quem sabe, assim, a sua mãe a quereria de volta... Tosse. Quem sabe ela aceitasse o Homem Cego como seu marido... Gostava tanto do Homem Cego! Tosse. Ele poderia ser seu pai. Tosse. O que será que aconteceu com a família do Homem Cego? Será que alguém sentia falta dele? Por que ele seguia com ela? Tosse. Onde estaria o Homem Cego naquele momento?
Lembrou-se que a Mulher Ruiva o havia tocado. Será que isso implicaria em algum problema para ela? (...) Em meio a tanta dificuldade de respirar e tanta preocupação em sua cabeça, a Pequena Ladra ergueu-se e retomou o que melhor sabia fazer: roubar chaves.
Devagar, o corpo da Pequena Ladra foi aquecendo e a tosse a deixou. As engrenagens vibraram fortes em seu rosto. Uma jovem mãe lhe entregou um pedaço de pão e uma maçã. Agradecida, a menina lhe entregou um sorriso.
- Cuide bem da sua criança, Jovem Mãe! Não faça com ela o que minha mãe fez comigo.

No céu, um balão a vapor riscava a cidade de perto. Era hora de procurar o Homem Cego.

Capítulo XII



O Homem Cego, mesmo sem enxergar, fizera alguns cálculos com base no ponteiro do suposto relógio que era aquela porta no chão. Pisando em alguns pontos específicos, de repente, um buraco fez-se sob os pés dos dois, mostrando, finalmente, a passagem.
- Que barulho foi esse, mocinha?
- O senhor conseguiu! O senhor descobriu! - disse a Pequena Ladra pulando feliz e abraçando o Homem Cego.
Com cuidado, ela colocou a cabeça para dentro do buraco a fim de descobrir o que tinha ali. Voltando a cabeça à superfície, a Pequena Ladra deitou a cabeça na grama rala.
- O senhor está a fim de passear?
- Para onde iremos dessa vez? - perguntou o Homem Cego.
- Um passeio de trem. O senhor gosta de trens?
- Mas, mocinha, nós não temos dinheiro para comer! Como iremos viajar de trem?
- O senhor gosta de trens? Eles fazem barulhos legais e cheiram gostoso. E a fumaça abana pra nós tão forte, nos chamando para viajar. Vamos viajar, senhor? Por favor?
Assim, a Pequena Ladra ajudou o Homem Cego a atravessar o buraco e o seguiu logo após. De um lado, um céu enorme e grama rala; do outro, o banco estofado de um trem, pronto para partir.
A menina sentou-se contente e ansiosa. Finalmente iria se libertar de tudo o que a consumia. Fugiria para tão longe que jamais precisaria se preocupar com o que havia vivido até então. Quem sabe até poderia se esquecer das engrenagens estampadas em sua pele...
O Homem Cego sentou-se na frente dela e batia os ossos da mão direita nos ossos da mão esquerda. Não sabia o que aguardava que acontecesse exatamente. Então, o início do caminho que se engole pelo movimento.

O trem corria. O barulho metálico explodia nos tímpanos dos dois. O estofado vermelho brilhava o cheiro de novo. A Pequena Ladra estava feliz e se sentia segura - pelo tempo da viagem, ao menos.

domingo, 8 de março de 2015

Capítulo XI



Mesmo debilitada, a Pequena Ladra pegou a mão do Homem Cego e, juntos, foram conhecer aquela cidade estranha. A cada passo, escutava-se o barulho das chaves. Olhando as engrenagens da cidade, a Pequena Ladra sentiu um pouco de medo e confessou ao homem cego.
- Por que ter medo, mocinha?
- Tudo dá errado quando aparecem engrenagens. Comigo foi assim!
O Homem Cego ficou em silêncio por um tempo. Recordou-se do dia em que furou seus olhos e tentava se lembrar do motivo que o levara a fazer aquilo além dos olhos roxos da menina. De repente, a menina, que caminhava curiosa, parou.
- O que houve? - perguntou o Homem.
- Acho que escolhemos o lugar errado para descer do trem.
- Por quê? O que houve?
- Ela sabe meu nome.
- "Ela" quem, mocinha?
Segurando forte a mão do homem, a Pequena Ladra começou a guiar a direção.da caminhada. Ela não sabia para onde estava indo, mas sabia o que tinha de fazer quando via a Mulher Ruiva. E ela estava lá, por algum motivo desconhecido. Então, a Pequena Ladra começou a ter muita dificuldade de respirar e sentou-se ao chão.
- Você vai me contar o que está acontecendo ou não? - perguntou o Homem Cego.
- Eu não posso. Ela sabe meu nome. Ela conhece meu rosto.
- Quem sabe do quê, mocinha?
Com dificuldade, ela foi explicando:
- A M... Mulher Ruiva! Ela está atrás de mim... faz um tempo. Desde que... surgiram as engrenagens... no meu rosto. Não é minha culpa... ser assim, senhor! Eu não... era assim. Eu não... tinha olhos roxos. Mas quando eu... fiz doze anos, algumas... coisas mudaram comigo e... a M... Mulher Ruiva sabe... de tudo. Ela quer me... matar, por eu ter destruído a vida dela, mas... eu não quis... Não queria... Eu não... sabia. Eu não era... assim!
O Homem Cego ficou realmente preocupado. Por que a Mulher Ruiva queria matar aquela menina? Por que ela falava tanto em engrenagens? Por qual motivo seus olhos se tornaram roxos? Precisava encontrar um médico para ajudá-la a respirar.

Exatamente em meio a esta explosão de questionamentos, a Mulher Ruiva apareceu por trás deles e, segurando o braço direito do Homem Cego, cochichou algo em seu ouvido. Quando ele começou a gritar que não se importava e que não queria saber, a menina já estava longe, correndo em fuga. Apenas os olhos verdes da Mulher Ruiva alcançavam o distanciamento.

domingo, 1 de março de 2015

Capítulo X



Chegando a um dos pontos de desembarque, o Homem Cego disse para a Pequena Ladra que achava melhor descerem. A Nova Passageira não estava mais com eles. A menina apenas concordou. Estava cansada de ver as horas passando e sentia-se febril.
Ninguém descera com eles. Fora do trem, uma multidão aguardando outro destino. Ninguém falava. Havia muitas pessoas e, consumida por um delírio inicial, a Pequena Ladra pôs-se a pechar em todos e a furtar todas as chaves que conseguia. O Homem Cego estava distante e a chamava baixinho, do seu jeito. De repente, um barulho seco de um corpo que tomba. Não foi preciso mais do que isso para que, firmemente, os passos do Homem Cego fossem ao encontro do corpo da Pequena Ladra que havia desmaiado. Ele a pegou no colo e gritou por ajuda, mas ninguém nem sequer olhou para eles. Ele gritou um pouco mais e, como ninguém lhe respondia, começou a chorar.
O Homem Cego sentiu medo pela primeira vez. Não poderia abandonar a menina - era tudo o que ele tinha -, mas precisava. Levantou-se e, tateando, saiu sem rumo. Ao encostar nas pessoas, pedia ajuda; contudo, nenhuma delas mostrou sua voz, ou reação sequer.
Por alguns segundos, detestou-se por ter furado seus olhos. Entretanto, entendeu que se não fosse por esse evento, aquela menina jamais teria uma família ou alguém que zelasse por ela e, por este motivo, decidiu voltar para ajudá-la.
Foi apenas o tempo de voltar-se e dar dois passos, que a menina o abraçou. Abraçou da mesma maneira que o abraçara na primeira vez em que roubara as chaves.
- Senhor, posso lhe pedir um favor?
- Claro, mocinha! O que queres?
- Não me abandone, está bem? Minha mãe já fez isso. Você furou seus olhos. Não me deixei só por eu ser doente e estranha.
- Mocinha, eu vejo os seus olhos roxos o tempo todo. Eu...

Um cheiro forte de combustão interrompeu o que o Homem Cego iria dizer. Não era preciso terminar: a Pequena Ladra entendera.

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Capítulo IX



   O trem corria. O barulho metálico explodia nos tímpanos dos dois. O estofado vermelho brilhava o cheiro de novo. A Pequena Ladra estava feliz e se sentia segura - pelo tempo da viagem, ao menos.
   Desacelerando, o trem parou. Não sabiam onde estavam. A mocinha pegou para ler um jornal que o passageiro anterior esquecera ali. Enquanto isso ocorria o desembarque. E depois o embarque. Logo que o trem retomou sua ânsia por distâncias, entrou na cabine uma jovem mulher, morena, risonha, não muito bonita.
   - Quem é? - perguntou o Homem Cego, apreensivo.
   - Calma, senhor! Eu sou apenas...
   - Outra passageira qualquer. - Interrompeu a Pequena Ladra.
   - Ah, mocinha, não seja mal-educada! Deixe que ela se apresente, certo?
   A Pequena Ladra soltou um muxoxo e pegou o jornal novamente. Não sabia ler, mas aquelas palavrinhas miudinhas talvez fizessem sentido tanto quanto suas engrenagens. Abaixou a cabeça e manteve os olhos distantes. Enquanto isso, o Homem Cego conversava com a Nova Passageira. Ela contou que fugira de sua família para viver um romance um jovem moço, mas que ele não a fez feliz e que, por isso, estava voltando para casa de seus pais. Que torcia que eles a aceitassem. E ela ria... Quase que desesperadamente.
   O Homem Cego nada dizia. Estava ficando enjoado com a voz daquela mulher, mas não seria polido de sua parte pedir que calasse a boca.
   - Ela é sua filha? - perguntou a Nova Passageira sobre a Pequena Ladra para o Senhor Cego.
   - Não. Na verdade, ela é uma...
   - Não lhe interessa. - Interrompeu novamente a mocinha, ainda escondida atrás do jornal. - Eu sou um monte de coisas e acho que você não precisa saber. O que quer provar contando essas histórias todas? Por que você só não fica quieta e desfruta do silêncio? É tão bom o silêncio!
   Constrangida, a Nova Passageira suspirou breve e calou-se.
   - Isso não foi bonito, mocinha... - Repreendeu o Homem Cego.
   - Ah, cala a boca, você também!

   A Pequena Ladra fechou os olhos e dormiu todas as dores que aquela viagem lhe causava. Pela primeira vez, alguém cuidava dela e a queria bem. Mas se questionava se precisava daquilo. Qual era a dificuldade das pessoas de aceitarem o silêncio?

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Capítulo VIII



A Pequena Ladra e o Homem Cego tentavam descobrir o segredo para abrir a porta no chão. Não haveria motivo para haver uma maçaneta ali se não houvesse uma porta atrás dela. Já era quase dia, mas eles não tinham mais fome. Percorreram uma longa trilha de árvores frutíferas e isso foi suficiente.
Não sabiam o que fazer, mas tinham que fazer algo. Tinham que dar um jeito! A mocinha começou, então, a bater com a sola da bota naquele chão de vidro.
- O que tem aí? - questionou o Homem Cego.
- É um círculo. Um círculo de vidro. No meio, há uma maçaneta. Parece um relógio.
- Então temos que localizar os ponteiros!
A Pequena Ladra tomou distância e fitou com atenção aquele lugar. Percebeu que a maçaneta estava direcionada para onde o Sol se punha, mas isso poderia não significar nada. Também percebeu que havia mais areia acima e abaixo da maçaneta, e, possivelmente, isso era desigualmente importante. Voltou para o centro do círculo e repetiu o ato de pisar forte. Queria quebrar. Foi quando a mão do Homem Cego repousou em cima de sua cabeça com cautela. Deveria mesmo haver uma forma mais delicada de resolver aquilo.
O Homem Cego abaixou-se e ficou tocando a maçaneta enquanto a Pequena Ladra percebia que ele ainda possuía resquícios de sangue no rosto. Com isso, ela tocou o seu próprio rosto, tentando entender as engrenagens que a acompanhavam e se questionou se era por esse motivo que aquele homem tão carinhoso havia furado seus próprios olhos.
- Descobri! - gritou o Homem Cego. - Neste ponto - disse apontando para o lado esquerdo da maçaneta - há uma linha comprida. É o ponteiro dos minutos. E mais ali - apontou, então, para o lugar acima da maçaneta - há um traço mais grosso e curto. É o ponteiro das horas. São onze horas e quarenta e cinco minutos.

- E daí?

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Capítulo VII


Já era noite feita e lá estava a Pequena Ladra em frente ao banco onde deixara o Homem Cego com sua cartola. Atrasada em muitas horas. Ali, parada em frente àquele que havia suicidado sua visão, manteve-se em silêncio. Ele havia esperado a mocinha e ela não acreditava. Não entendia porque alguém podia querer esperar pela sua presença.
O Homem Cego “olhava” para os lados com certa impaciência, como que procurando a menina que não chegava nunca, mas que estava lhe observando a poucos passos. Atordoada por aquela cena e engolindo algumas lágrimas fugitivas, resolveu fazer sua voz ecoar algum som frente àquela ausência de.
- Você ficou me esperando... - engasgou.
- Mocinha! Você finalmente chegou! Já amanheceu?
Envergonhada, não queria dizer-lhe que demorara muito tempo a mais, embora não planejasse mentir para aquele homem.
- Perdi o amanhecer, senhor. Dormi demais e me atrasei.
- Ah! - exclamou - não tem problema... Eu só estou com fome e...
- Você não vai procurar sua família? - interrompeu a Pequena Ladra.
- Perdi a chave de casa.
A Pequena Ladra colocou a mão em seu bolso, mas não tinha como adivinhar qual daquelas pertencia ao Homem Cego.
- Eu realmente estou com fome. - repetiu.
A Pequena Ladra poderia esperar amanhecer novamente para tentar roubar algum pedaço de pão da padaria não muito longe dali... Mas seriam horas longas e não tinha tempo. A Mulher Ruiva viria buscá-la e ela não poderia esperar.
- O senhor tem medo do escuro?
- Se eu tivesse, estaria desesperado nesse momento, não é? - disse, apontando para os olhos.
- Tenho um lugar onde podemos ir. Não é aqui na cidade. Deveremos encontrar comida... Ou, senão, podemos mastigar a grama. Faço isso há anos e estou viva! Vês?
Em um segundo, a Pequena Ladra deu-se por conta que repetira o erro de esquecer que o Homem Cego não podia mais enxergar.
- O que você vê?

- Eu não sei. - disse ele colocando a cartola na cabeça e se erguendo do banco.

sábado, 24 de janeiro de 2015

Capítulo VI


   Enquanto caminhava sem saber exatamente para onde, na tentativa de encontrar algum sinal que a levasse para perto da cidade, no céu surgiu uma espécie de submarino gigante. Boquiaberta, a Pequena Ladra parou e ficou olhando aquele monstro que rasgava o céu.
   Quando se deu por conta, seguia o trajeto que o balão a vapor fazia. E só teve tal percepção justamente por ter se deparado em frente a um casarão antigo, de paredes de pedras esgarçadas pelo tempo. Precisava passar por ele para seguir o seu caminho... Ou melhor, aquele que o balão lhe indicava, como um sinal.
   Sentiu cheiro de carne podre e teve medo. De repente, ouviu um estalido e percebeu que uma mulher muito nova, de cabelos negros soltos e vestido branco, se arrastava pela frente da casa. A Pequena Ladra deitou-se no chão, atrás de uma árvore, querendo se esconder. Alguma coisa muito estranha acontecia ali, mas não queria saber o que era. Queria encontrar o Cego da Cartola.
   Viu, então, que aquela dama estava ferida, pois mancava a perna direita. Ela rezava baixo, com as mãos unidas, apertando os nós dos dedos ao mesmo tempo. Parou por um segundo e virou-se, na sensação de estar sendo observada. Afastando as mãos, e sem perceber, deixou cair uma de suas pulseiras do pulso esquerdo.
   A Pequena Ladra esperou aquela criatura recompor de sua desconfiança e se arrastar para dentro de uma das portas da casa para desaparecer, trazendo um silêncio ensurdecedor naquele ambiente. Assim que pôde, a mocinha levantou-se, pegou a pulseira e pôs-se a correr, a fim de recuperar o tempo perdido. Foi quando se encontrava suficientemente longe daquele casarão com tantos segredos que escutou um grito forte e estridente. Compreendeu: aquele lugar era o qual carregava em seus sonhos, aquele que seu palato fazia questão de lhe entregar em gosto de sangue.
   Correu com mais vontade para ficar cada vez mais distante. Agora já sabia que era questão de tempo até a Mulher Ruiva encontrá-la e dizer o seu nome novamente. Correu até cansar e, depois disso, andou até entardecer. Jamais saberia que estava próxima à cidade se não tivesse conseguido distinguir o piscar das luzes dos lampiões. Nesse momento, finalmente, parou para olhar - com curiosidade e paciência - a pulseira que roubara: era dourada e trazia presa em si duas chaves: uma grande, comprida e cor de estanho; outra pequena, delicada e dourada.

   Estava no lugar certo, mas não poderia ficar.

sábado, 17 de janeiro de 2015

Capítulo V


   Quando o Sol começou a respirar seus primeiros raios dourados, a Pequena Ladra despertou. Correndo, caíra em algum lugar que não sabia onde era. Perdera algumas chaves pelo caminho, mas já não podia se importar. Ferira a Mulher Ruiva e fugira. Também já não sabia mais como voltar e nutria medo.
   Pisava devagar na relva do chão. Não podia fazer barulho. E se a encontrassem? De repente, ao longe, uma fumaça branca surgiu e, com ela, o som tão característico... Mas não havia trem! Assustada, apressou o passo. Acreditava estar perto dos trilhos, mesmo tendo uma vaga lembrança de que havia corrido para o lado oposto deles.
   Um estalo.
   A Pequena Ladra tropeçou e caíra, novamente, no chão. Teve vontade de chorar, mas não podia. Ninguém a consolaria e não se tornaria mais ou menos forte por expelir umas gotas de água pelos olhos. Foi então que percebeu: tropeçara em uma maçaneta.
   - Uma maçaneta no chão? Por que teria uma maçaneta...
   Naquele exato lugar já não havia grama. Apenas areia e algumas pedras. De fato, era de se estranhar. Em meio àquele vazio da paisagem, um grande círculo de terra escura e, bem ao centro, um brilho prateado. Aquele mistério foi o suficiente para dar vida aos olhos curiosos e roxos da Pequena Ladra.
   Tentou girar a maçaneta, mas não conseguiu mover nada do lugar. Com o dorso da mão direita, afastou um pouco a terra que estava ao redor e percebeu, então, que a terra escondia um enorme e redondo pedaço de vidro. Parecia ser um relógio, mas onde estariam os ponteiros? Olhando mais perto e através daquilo, viu, em um breve momento, parte de um estofamento vermelho e velho.
   Então, escutou novamente o barulho de trem, como se estivesse se aproximando, e sentiu cheiro de combustão. Ergueu-se observando a sujeira de suas mãos. Respirou fundo. E foi quando ouviu o grito de outra alma, ao longe, sendo sacrificada, que fechou os olhos. Essa havia sido ofertada de forma diferente... Essa alma jovem era de uma menina mais nova que ela e de cabelos louros. Alguém lhe serrava o pescoço. Conseguiu sentir os tendões dela sendo arrebentados. O cheiro de sangue misturado ao da fumaça branca. Respirou fundo. O gosto do sangue...

   Em um sobressalto, lembrou-se do senhor cego. Havia prometido. Precisava encontrá-lo! Promessas servem para serem quebradas, mas a Pequena Ladra sempre cumpria com sua palavra, mesmo que não explícita.

domingo, 11 de janeiro de 2015

Capítulo IV


Ao entardecer, as lamparinas começavam a acender suas luzes fracas em torno dos trilhos abandonados. Tudo o que era movimento acabou por se esconder atrás do matagal alto e amarelado para manter a sobrevivência naquele lugar.
A pequena Ladra batia forte suas botas sujas nos cascalhos do caminho do trem. Cada passo era uma gota de sangue que escorria no rosto do senhor da cartola. Quis chorar, mas já não tinha tempo e enquanto alguém gritava o sangue do sacrifício, a Pequena Ladra ouviu o seu nome. Com medo, virou-se.
Atrás de si encontrava-se uma mulher de cabelos cor de laranja e lisos. Carregava uma bússola presa na carne do pescoço, na altura da jugular. Alguém a havia machucado, mas já não lembrava. Apenas sabia que se retirasse dali aquele objeto que a infeccionava lentamente, seriam quatro minutos espirrando sangue e nunca mais veria a Pequena Ladra.
A Pequena Ladra virou-se de cabeça baixa. Não disse palavra alguma. Escondeu a manga suja de sangue.
- Mocinha, se eu sei o teu nome, tu sabe quem eu sou. Diga quem eu sou!
Não disse palavra alguma.
- Mocinha! Está na hora.

A Pequena Ladra abaixou-se devagar. Uma lágrima escorreu pelo seu queixo - não queria ter de fazer aquilo... De dentro da sua bota encardida, retirou um pequeno canivete. E foi o tempo da moça ruiva sentir a rajada de vento quente em seu rosto para que sua coxa sangrasse em um urro inaudível. Enquanto isso, a menina já estava longe, correndo por um caminho diferente daquele que o trem costumou fazer.

sábado, 3 de janeiro de 2015

Capítulo III


   Guiando o cego de cartola, a Pequena Ladra o levou até um banco de praça, iluminado por uma lamparina a óleo. Não poderia levá-lo até os trilhos. Se o fizesse, demonstraria uma culpa que não estava sentindo.
   - O que você fez foi inexplicável. - disse a Pequena Ladra limpando o rosto do senhor com sua própria manga.
   - Eu senti uma vontade, mocinha... Não sei explicar. Foi tão mais forte que eu. E agora eu não sei mais que cor o mundo tem. É roxo, mocinha? Roxo igual seus olhos?
   - Você nem me conhece. Iria voltar pra casa, pra sua família. Nunca mais iria me ver. Deveria ter ido. Deveria ir.
   - Por quê?
   - Alguém deve estar se preocupando por você nesse momento, senhor.
   - E por você, mocinha, ninguém se preocupa?
   A Pequena Ladra rangeu os dentes, impaciente.
   - Se você furou seus próprios olhos porque viu meu rosto, imagine se eu fosse sua filha! Certamente teria feito o mesmo que... - e calou-se. Falara demais.
   - Feito o quê, mocinha? - perguntou o cego.
   - Agora eu preciso ir embora. Se você me disser que vai ficar bem, eu vou embora.
   - Não posso ir com você?
   - Não.
   - Então eu vou ficar bem se você vier me ver amanhã antes do amanhecer. Pode prometer? Tenho medo.
   Antes do término da frase, a Pequena Ladra já não estava com o senhor da cartola. E mesmo se tivesse ficado para ouvir, não teria prometido nada.
   Das coisas que aprendeu com a vida é que promessas servem para não serem cumpridas.

   Esvaziou a mente até sobrar apenas o tác-tác de suas botas pelo caminho do trilho do trem e do tilintar das chaves em seu bolso.