domingo, 13 de setembro de 2015

Capítulo XVIII



Acordou. Pingos grossos da chuva que caía confundiam-se com os cascos dos cavalos nos paralelepípedos da rua. Uma sombra lhe tapou a boca e surgiu, então, um dedo indicador pressionando seu lábio em sinal de silêncio. Era a Nova Passageira.
Como chegara ali e em que circunstância viera a encontrar a Pequena Ladra, isso não vem a importar. Interessa apenas que ela estava ali. A mocinha abraçou-lhe em agradecimento - um ato de afeto não costumeiro. Uma figura conhecida que poderia lhe ajudar. Olharam-se.
- O que você está fazendo aqui, mocinha? - perguntou a Nova Passageira.
- Como você conseguiu me olhar?
- Por que não conseguiria? - devolveu a pergunta, risonhamente.
- Vai me ajudar a sair daqui? Não vaideixar que me peguem, né?
- Quem sabe a gente não procura o Homem Cego antes?
- Não quero ver ele. Tive um sonho com ele.
- E?
- E sempre que eu sonho com alguém, alguma coisa acontece. Não posso mais ver ele.
- Mocinha, ele já está cego e sem família. Nem a morte pode ser pior que isso. Vamos procurá-lo, está bem?
- Como foi que você conseguiu me olhar?
Fingindo não ter escutado a pergunta da Pequena Ladra, a Nova Passageira ajudou-a a levantar e a sair do guichê. Ninguém poderia vê-las; por mais que fossem crianças, a sociedade não aceitava aqueles que dormissem em lugares públicos.
Ambas aproveitaram a chuva para lavarem o rosto e as mãos. Então, com grandes sorrisos, a rapariga levou a mocinha até uma padaria.
- Dois pães com manteiga! - pediu a Nova Passageira.
- Como iremos pagar? - cochichou a Pequena Ladra.
A Nova Passageira apenas sorriu de canto de boca, sem olhar para a Pequena. Comeram enquanto escorriam em desenhos abstratos as gotas da chuva. Ambas queriam pegar o trem e ir para qualquer lugar, embora não admitissem em voz alta. Os segredos da Pequena Ladra poderiam ser os mesmos da Nova Passageira, mas jamais seriam amigas a ponto de se confiarem.

Mesmo a Nova Passageira tendo pago a refeição que lhe lembrava os tempos em que fazia parte de uma família, a Pequena Ladra não gostava daquela menina de cabelos morenos: lhe irritava a presença ininterruptamente feliz. Ela havia lhe salvado, mas jamais poderia arrancar de sua pele o beijo que Xaphan lhe dera, ou descolar de sua retina o sonho que tivera com o Homem Cego. Na verdade, só gostaria de entender como ela conseguira olhar tão fundo nos seus olhos roxos e permanecer ao seu lado.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Capítulo XVII


De repente havia luz e um céu sem nuvens capaz de fornecer sombras sólidas a todos os seres munidos de alma. Os cabelos da Pequena Ladra ousaram aparecer por trás do capuz sujo. Ela os prendeu enquanto notava que estava sozinha naquele lugar tão doce quanto sua infância. Colocou as mãos nos bolsos, instintivamente, à busca das chaves - para rememorar que deveria continuar com seus furtos -, mas nada encontrou.
Assustada, a garganta trancou o choro que suplicava surgir. Tantas chaves que conseguira e, agora, como saberia se não havia perdido a oportunidade de encontrar a peça perfeita para lhe livrar da maldição de carregar as engrenagens? Ajoelhou-se perdida, tentando manter a calma.
Apareceu o Homem Cego para então dizer-lhe:
- Mocinha, você não tem motivo algum para querer chorar. Veja como o céu está lindo!
- Como o senhor sabe que o céu está lindo se o senhor é cego?
Em risos, e arrumando a cartola na cabeça, respondeu-lhe:
- Eu era cego, mocinha. Eu era... Agora consigo ver você com tanta nitidez quanto o sol te queima a bochecha!
Sem nada entender, a Pequena Ladra olhou então para suas mãos e elas já não possuíam marcas. Estavam lisas, brancas, limpas, sem nenhum desenho colorido: saudáveis. Não conseguia entender. Impulsivamente, pegou o Homem não mais Cego pelo braço e questionou-lhe:
- Qual a cor dos meus olhos?
- A cor de sempre, mocinha. Roxos.
E uma dor intensa foi afundando as têmporas da menina. Dezenas de mulheres vestidas de branco, cheirando a sangue fresco, mortas, apareceram ao seu redor. Sorriam para a aparição da Mulher Ruiva, por trás da Pequena Ladra, de mãos dadas com a jovem de cabelos castanhos, que reclamava sua pulseira com as chaves.
A Pequena Ladra pôs-se a correr da forma que conseguiu, porém, quanto mais força desprendia para correr rapidamente, mais lento era seu movimento. O ar começou a faltar-lhe e a cabeça pulsava violentamente. Já não conseguia enxergar com precisão... Apenas via as veias voltando a formar-se em forma de engrenagens pela sua pele...

Acordou. Pingos grossos da chuva que caía confundiam-se com os cascos dos cavalos nos paralelepípedos da rua.