Acordou. Pingos grossos da chuva que
caía confundiam-se com os cascos dos cavalos nos paralelepípedos da rua. Uma
sombra lhe tapou a boca e surgiu, então, um dedo indicador pressionando seu lábio
em sinal de silêncio. Era a Nova Passageira.
Como chegara ali
e em que circunstância viera a encontrar a Pequena Ladra, isso não vem a
importar. Interessa apenas que ela estava ali. A mocinha abraçou-lhe em
agradecimento - um ato de afeto não costumeiro. Uma figura conhecida que poderia lhe ajudar. Olharam-se.
- O que você está fazendo aqui,
mocinha? - perguntou a Nova Passageira.
- Como você conseguiu me olhar?
- Por que não conseguiria? - devolveu a
pergunta, risonhamente.
- Vai me ajudar a sair daqui? Não
vaideixar que me peguem, né?
- Quem sabe a gente não procura o Homem
Cego antes?
- Não quero ver ele. Tive um sonho com
ele.
- E?
- E sempre que eu sonho com alguém,
alguma coisa acontece. Não posso mais ver ele.
- Mocinha, ele já está cego e sem
família. Nem a morte pode ser pior que isso. Vamos procurá-lo, está bem?
- Como foi que você conseguiu me olhar?
Fingindo não ter escutado a
pergunta da Pequena Ladra, a Nova Passageira ajudou-a a levantar e a sair do guichê.
Ninguém poderia vê-las; por mais que fossem crianças, a sociedade não aceitava
aqueles que dormissem em lugares públicos.
Ambas aproveitaram a chuva para lavarem
o rosto e as mãos. Então, com grandes sorrisos, a rapariga levou a mocinha até uma padaria.
- Dois pães com manteiga! - pediu a
Nova Passageira.
- Como iremos pagar? - cochichou a
Pequena Ladra.
A Nova Passageira apenas sorriu de canto de boca, sem
olhar para a Pequena. Comeram enquanto escorriam em desenhos abstratos as gotas
da chuva. Ambas queriam pegar o trem e ir para qualquer lugar, embora não
admitissem em voz alta. Os segredos da Pequena Ladra poderiam ser os mesmos da
Nova Passageira, mas jamais seriam amigas a ponto de se confiarem.
Mesmo a Nova Passageira tendo pago a
refeição que lhe lembrava os tempos em que fazia parte de uma família, a Pequena Ladra
não gostava daquela menina de cabelos morenos: lhe irritava a presença
ininterruptamente feliz. Ela havia lhe salvado, mas jamais poderia arrancar de
sua pele o beijo que Xaphan lhe dera, ou descolar de sua retina o sonho que
tivera com o Homem Cego. Na verdade, só gostaria de entender como ela
conseguira olhar tão fundo nos seus olhos roxos e permanecer ao seu lado.