domingo, 26 de abril de 2015

Capítulo XVI


O silêncio na cidade era imenso. Podia ouvir-se a quadras de distância a batida do solado bruto da Pequena Ladra correndo pelas ruas sujas, buscando a estação de trem. Já era quase noite feita e nem uma única alma era avistada por ali. O medo da escuridão, de permanecer eternamente naquele lado, sem jamais rever a faísca dourada do Sol na córnea...
Chegando na estação, a Pequena Ladra escondeu-se atrás do guichê de venda de bilhetes. Não poderia deixar que a Mulher Ruiva a encontrasse em uma situação desprotegida. Já não era mais opção tentar combatê-la.
Pôs-se a chorar. Sua cabeça de menina não conseguia digerir tudo o que estava acontecendo nos últimos dias. Embebida em sono, cansaço e algumas lágrimas restantes, um apito fez-se vivo. Com os dedos sujos, a Pequena Ladra limpou os olhos úmidos e ergueu-se devagar, tentando não fazer barulho.
Por entre as frestas da mesa do guichê de venda de bilhetes, a Pequena Ladra viu que apenas um vagão do trem havia parado. Demorava-se a abrir a porta. Uma moça com vestes brancas aguardava para embarcar. Na face daquela mulher, toda a serenidade de quem entende que vai ter que seguir um destino específico.
A porta abriu-se e o maquinista sorriu. Em passos lentos e hipnóticos, a moça com vestes brancas adentrou no vagão e desapareceu na escuridão do mistério que era aquele momento. A Pequena Ladra teve vontade de gritar, de implorar para que aquela moça não buscasse aquele fim para ela, mas não pôde. Se gritasse, mocinha também teria que entrar no vagão e seguir o mesmo rumo. Xaphan já havia lhe marcado...

Sentou-se, novamente, escondida atrás do balcão e olhou para suas mãos. Parecia-lhe que as engrenagens haviam sumido, mas sabia que esse era apenas seu desejo e a escuridão ajudava a proporcionar essa miragem deliciosa que era não ser mais doente; voltar a ter os olhos castanhos. Adormeceu.

domingo, 12 de abril de 2015

Capítulo XV


A Nova Passageira caminhava sorridente e cantarolante, com a cabeça nas nuvens. Nem percebera que, ao seu lado, a Pequena Ladra deixava cair pelo caminho gotas de lágrimas grossas. Gotas para satisfazer a alegria de Xaphan.
Pararam as duas, de repente.
- Aonde é mesmo? - perguntou a Nova Passageira.
- Eu achava que era por aqui...
- Por que você está chorando? - perguntou, abaixando-se.
A Pequena Ladra nada disse, mas olhou intenso dentro dos olhos castanhos da outra menina. Foi suficiente para que a Nova Passageira parasse de sorrir e transformasse o seu semblante.
- Por que são roxos?
- Não eram.
- Por que são?
- Não sei.
- Sua mãe já lhe levou ao médico?
- Minha mãe morreu. - mentiu a mocinha.
- De quê?
Não respondeu. Não respondeu e retomou o passo. O “tác-tác” das botas era tão forte e tão firme que qualquer um diria que ela sabia exatamente para onde estava indo. A Nova Passageira, por sua vez, não a acompanhou. Estava rígida, agachada e com uma expressão de horror. E assim ficou.
A Pequena Ladra já não chorava, nem sequer pensava em Xaphan. Dobrara à esquerda na primeira esquina e logo escutou o barulho do trem. Foi o suficiente para retomar seu foco. Ademais, ria baixinho, com alguns leves picos de tosse: havia pegado a chave daquela menina morena doida e estava ansiosa para testar. Deveria ser essa a chave que a libertaria das engrenagens!
O céu avermelhado petrificava o interior da mocinha de medo. A respiração estava cada vez mais difícil de manter compassadamente. Parou por alguns segundos, descansou com as mãos nos joelhos. A cabeça baixa tentando recuperar as forças daqueles anos todos.
De repente, um som inconfundível fez a coluna da Pequena Ladra se endireitar. Uma fumaça branca riscava o arrebol à noroeste mostrando exatamente que direção tomar. A estação de trem estava ali e logo iria voltar para os trilhos onde costumava dormir, em meio aos lagartos e à vista das casas abandonadas com vidros engordurados.

Começou a correr. As pessoas da cidade, então, finalmente, retomaram seus movimentos. Como se nunca tivessem sido estátuas, a vida continuava e a Pequena Ladra estava correndo para voltar a viver o futuro, distante daqueles todos, buscando preocupar-se apenas com as chaves.

domingo, 5 de abril de 2015

Capítulo XIV



Caminhando perdida, duas mãos pousaram bruscas nos ombros da Pequena Ladra. Tentou correr, mas não conseguiu. Uma voz gélida surgiu pegajosa na orelha direita da mocinha para lhe dizer:
- Estou te cuidando. Preciso de você.
Marcando a mocinha com as unhas, aquele ser beijou-lhe a nuca, abaixo da orelha. A Pequena Ladra começou a chorar. Sabia que esse era o sinal. Fugir da Mulher Ruiva não adiantara de nada e agora ela estava batizada por Xaphan.
- Você sabe bem que tem uma saída, Pequena Ladra. Está na hora de você deixar de ser menina! Juntos, dominaremos os Sete Príncipes. Você sabe o que fazer.
Não deixando rastros de sua existência, o anjo caído desapareceu. A Pequena Ladra tentou respirar com calma, mas sentia cada vez mais dificuldade de manter sua saúde. Talvez devesse se juntar àquela situação... Talvez não devesse. Já não sabia mais se havia motivo de seguir fugindo, de conseguir encontrar a chave correta...
Precisava encontrar o Homem Cego e contar-lhe!... Ou permanecer muda. Certamente não seria correto envolver aquele homem bom à profundeza podre da marca que agora carregava.
Finalmente, então, a mocinha conseguiu se mover. Deu dois passos à frente e parou. Olhou para a esquerda e as pessoas estavam paradas, como que hipnotizadas. Igual às pessoas que aguardavam o trem partir na estação. Olhou para a direita e não havia ninguém. O único movimento vinha do balão no céu.
Cutucou uma mocinha qualquer e percebeu, depois, que era a Nova Passageira. Um tanto aliviada, a Pequena Ladra tentou acordá-la daquele estado congelado, mas nada conseguiu. Segurou a sua mão e começou a andar. Inexplicavelmente, a Nova Passageira seguiu caminhando junto.
- Vamos voltar para a estação? Vamos... Eu te levo... Vamos!

Um silêncio afrontador mergulhava em fagulhas dentro dos ouvidos da Pequena Ladra. Ela ainda não havia conseguido parar de chorar. Precisava encontrar o Homem Cego. Queria rever a sua mãe...