domingo, 22 de março de 2015

Capítulo XVIII


Quando o Homem Cego começou a gritar que não se importava e que não queria saber, a menina já estava longe, correndo em fuga. Apenas os olhos verdes da Mulher Ruiva alcançavam o distanciamento.
A Pequena Ladra, novamente, apenas parou de correr quando suas pernas fraquejaram. Anoitecia e ela não fazia ideia de onde estava. Desconhecia a cidade, mas estava intrigada com tanta novidade.
Sentou-se, com muita dificuldade para respirar, e escondeu o rosto dos que ali passavam. Viu em suas mãos o desenho violáceo das engrenagens que eram suas veias. O desenho cada vez mais forte, mais evidente. Tinha raiva de si. Se suas mãos estavam daquele jeito, seu rosto deveria estar também. E quanto mais escuro os traços das engrenagens do seu rosto, mais as pessoas a condenariam por doente.
Precisava encontrar a chave, pensava... A chave que abriria a porta das engrenagens de sua pele e que a libertariam daquele estado. Tosse. Talvez, assim, seus olhos deixassem de ser roxos... Tosse. Quem sabe, assim, a sua mãe a quereria de volta... Tosse. Quem sabe ela aceitasse o Homem Cego como seu marido... Gostava tanto do Homem Cego! Tosse. Ele poderia ser seu pai. Tosse. O que será que aconteceu com a família do Homem Cego? Será que alguém sentia falta dele? Por que ele seguia com ela? Tosse. Onde estaria o Homem Cego naquele momento?
Lembrou-se que a Mulher Ruiva o havia tocado. Será que isso implicaria em algum problema para ela? (...) Em meio a tanta dificuldade de respirar e tanta preocupação em sua cabeça, a Pequena Ladra ergueu-se e retomou o que melhor sabia fazer: roubar chaves.
Devagar, o corpo da Pequena Ladra foi aquecendo e a tosse a deixou. As engrenagens vibraram fortes em seu rosto. Uma jovem mãe lhe entregou um pedaço de pão e uma maçã. Agradecida, a menina lhe entregou um sorriso.
- Cuide bem da sua criança, Jovem Mãe! Não faça com ela o que minha mãe fez comigo.

No céu, um balão a vapor riscava a cidade de perto. Era hora de procurar o Homem Cego.

Capítulo XII



O Homem Cego, mesmo sem enxergar, fizera alguns cálculos com base no ponteiro do suposto relógio que era aquela porta no chão. Pisando em alguns pontos específicos, de repente, um buraco fez-se sob os pés dos dois, mostrando, finalmente, a passagem.
- Que barulho foi esse, mocinha?
- O senhor conseguiu! O senhor descobriu! - disse a Pequena Ladra pulando feliz e abraçando o Homem Cego.
Com cuidado, ela colocou a cabeça para dentro do buraco a fim de descobrir o que tinha ali. Voltando a cabeça à superfície, a Pequena Ladra deitou a cabeça na grama rala.
- O senhor está a fim de passear?
- Para onde iremos dessa vez? - perguntou o Homem Cego.
- Um passeio de trem. O senhor gosta de trens?
- Mas, mocinha, nós não temos dinheiro para comer! Como iremos viajar de trem?
- O senhor gosta de trens? Eles fazem barulhos legais e cheiram gostoso. E a fumaça abana pra nós tão forte, nos chamando para viajar. Vamos viajar, senhor? Por favor?
Assim, a Pequena Ladra ajudou o Homem Cego a atravessar o buraco e o seguiu logo após. De um lado, um céu enorme e grama rala; do outro, o banco estofado de um trem, pronto para partir.
A menina sentou-se contente e ansiosa. Finalmente iria se libertar de tudo o que a consumia. Fugiria para tão longe que jamais precisaria se preocupar com o que havia vivido até então. Quem sabe até poderia se esquecer das engrenagens estampadas em sua pele...
O Homem Cego sentou-se na frente dela e batia os ossos da mão direita nos ossos da mão esquerda. Não sabia o que aguardava que acontecesse exatamente. Então, o início do caminho que se engole pelo movimento.

O trem corria. O barulho metálico explodia nos tímpanos dos dois. O estofado vermelho brilhava o cheiro de novo. A Pequena Ladra estava feliz e se sentia segura - pelo tempo da viagem, ao menos.

domingo, 8 de março de 2015

Capítulo XI



Mesmo debilitada, a Pequena Ladra pegou a mão do Homem Cego e, juntos, foram conhecer aquela cidade estranha. A cada passo, escutava-se o barulho das chaves. Olhando as engrenagens da cidade, a Pequena Ladra sentiu um pouco de medo e confessou ao homem cego.
- Por que ter medo, mocinha?
- Tudo dá errado quando aparecem engrenagens. Comigo foi assim!
O Homem Cego ficou em silêncio por um tempo. Recordou-se do dia em que furou seus olhos e tentava se lembrar do motivo que o levara a fazer aquilo além dos olhos roxos da menina. De repente, a menina, que caminhava curiosa, parou.
- O que houve? - perguntou o Homem.
- Acho que escolhemos o lugar errado para descer do trem.
- Por quê? O que houve?
- Ela sabe meu nome.
- "Ela" quem, mocinha?
Segurando forte a mão do homem, a Pequena Ladra começou a guiar a direção.da caminhada. Ela não sabia para onde estava indo, mas sabia o que tinha de fazer quando via a Mulher Ruiva. E ela estava lá, por algum motivo desconhecido. Então, a Pequena Ladra começou a ter muita dificuldade de respirar e sentou-se ao chão.
- Você vai me contar o que está acontecendo ou não? - perguntou o Homem Cego.
- Eu não posso. Ela sabe meu nome. Ela conhece meu rosto.
- Quem sabe do quê, mocinha?
Com dificuldade, ela foi explicando:
- A M... Mulher Ruiva! Ela está atrás de mim... faz um tempo. Desde que... surgiram as engrenagens... no meu rosto. Não é minha culpa... ser assim, senhor! Eu não... era assim. Eu não... tinha olhos roxos. Mas quando eu... fiz doze anos, algumas... coisas mudaram comigo e... a M... Mulher Ruiva sabe... de tudo. Ela quer me... matar, por eu ter destruído a vida dela, mas... eu não quis... Não queria... Eu não... sabia. Eu não era... assim!
O Homem Cego ficou realmente preocupado. Por que a Mulher Ruiva queria matar aquela menina? Por que ela falava tanto em engrenagens? Por qual motivo seus olhos se tornaram roxos? Precisava encontrar um médico para ajudá-la a respirar.

Exatamente em meio a esta explosão de questionamentos, a Mulher Ruiva apareceu por trás deles e, segurando o braço direito do Homem Cego, cochichou algo em seu ouvido. Quando ele começou a gritar que não se importava e que não queria saber, a menina já estava longe, correndo em fuga. Apenas os olhos verdes da Mulher Ruiva alcançavam o distanciamento.

domingo, 1 de março de 2015

Capítulo X



Chegando a um dos pontos de desembarque, o Homem Cego disse para a Pequena Ladra que achava melhor descerem. A Nova Passageira não estava mais com eles. A menina apenas concordou. Estava cansada de ver as horas passando e sentia-se febril.
Ninguém descera com eles. Fora do trem, uma multidão aguardando outro destino. Ninguém falava. Havia muitas pessoas e, consumida por um delírio inicial, a Pequena Ladra pôs-se a pechar em todos e a furtar todas as chaves que conseguia. O Homem Cego estava distante e a chamava baixinho, do seu jeito. De repente, um barulho seco de um corpo que tomba. Não foi preciso mais do que isso para que, firmemente, os passos do Homem Cego fossem ao encontro do corpo da Pequena Ladra que havia desmaiado. Ele a pegou no colo e gritou por ajuda, mas ninguém nem sequer olhou para eles. Ele gritou um pouco mais e, como ninguém lhe respondia, começou a chorar.
O Homem Cego sentiu medo pela primeira vez. Não poderia abandonar a menina - era tudo o que ele tinha -, mas precisava. Levantou-se e, tateando, saiu sem rumo. Ao encostar nas pessoas, pedia ajuda; contudo, nenhuma delas mostrou sua voz, ou reação sequer.
Por alguns segundos, detestou-se por ter furado seus olhos. Entretanto, entendeu que se não fosse por esse evento, aquela menina jamais teria uma família ou alguém que zelasse por ela e, por este motivo, decidiu voltar para ajudá-la.
Foi apenas o tempo de voltar-se e dar dois passos, que a menina o abraçou. Abraçou da mesma maneira que o abraçara na primeira vez em que roubara as chaves.
- Senhor, posso lhe pedir um favor?
- Claro, mocinha! O que queres?
- Não me abandone, está bem? Minha mãe já fez isso. Você furou seus olhos. Não me deixei só por eu ser doente e estranha.
- Mocinha, eu vejo os seus olhos roxos o tempo todo. Eu...

Um cheiro forte de combustão interrompeu o que o Homem Cego iria dizer. Não era preciso terminar: a Pequena Ladra entendera.