segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Capítulo II


Os longos casacos negros e tintos respiravam por entre as ruas, naquele final de tarde. Os cavalos desapareciam dos tílburis a cada dia, sendo substituídos por uma fumaça acinzentada de combustão.
O horizonte, em matizes alaranjados, era o único a enxergar a pequena criança de aproximadamente quatorze anos a mexer com os próprios dedos ossudos, sentada no meio da rua, no caminho da multidão. Sempre alguém lhe pisava, tropeçando. E toda vez que ocorria um tropeço, a Pequena Ladra sorria sem mexer os lábios, escondida dentro das vestes surradas.
- Você não deveria estar em casa, mocinha? - lhe perguntou um senhor segurando a aba da cartola.
Não respondeu. Apenas abraçou o homem, sem olhá-lo, como se ele fosse sua mãe. Como se sentisse saudades de sua mãe.
Constrangido com o ato tão terno da menina, ele teve medo.
- O que você precisa, mocinha?
Ainda sem responder, levantou o semblante escondido atrás da franja, deixando seu rosto visível para que, então, pudesse o senhor perceber os seus traços. Ele aceitou a mudez e seguiu seu caminho. Já não conseguiria mesmo falar depois de ter visto o que vira.
A Pequena Ladra havia conseguido mais uma chave e ria devagar. A respiração falhava, mas era frio e, assim, poderia voltar para os trilhos, logo que parasse de tentar entender as engrenagens das suas mãos.
De repente, um grito firme ao longe. As pessoas que estavam na rua se afastaram da expressão de agonia retratada pelo homem. Contornavam-no, como se um centímetro mais próximo viesse a incrustar uma doença fatal em quem ousasse. O senhor da cartola acabara de furar seus próprios olhos.
A menina levantou-se pela primeira vez. O solado grosso das botas batendo forte nas pedras do chão levou-a até dois passos do rosto ensanguentado.
- É mais fácil nunca mais ver, né? Só que agora, você vai me enxergar até a morte, imbecil! Eu vou seguir na tua memória.

- E como poderia ser diferente?

domingo, 28 de dezembro de 2014

Capítulo I


   Ao entardecer, as lamparinas começavam a acender suas luzes fracas em torno dos trilhos abandonados. Tudo o que era movimento acabou por se esconder atrás do matagal alto e amarelado para manter a sobrevivência naquele lugar.
   Nem tão longe dali, pequenas casas seguiam o trajeto acompanhando a via férrea. Certamente houveram moradores ali, mesmo que já não fossem tão visíveis... Pelas janelas engorduradas, flores murchas em tarros de água suja. Trancas. Correntes. O desespero de perder o nada.
   Do outro lado, o barulho dos cascalhos sendo maltratados pelo pisar grosso das botas da Pequena Ladra que chegava. Os bolsos tilintando o choque das chaves roubadas na vila. Os olhos roxos lhe denunciavam o que havia feito. Quarenta e seis. Era considerado pecado. Continuaria fazendo. 
   Os lagartos cruzavam seu caminho e só então ela sorria. Eles eram iguais ela, mas com um propósito diferente. Cada um rouba o que bem entende pela importância que quer dar.
A Pequena Ladra não tinha uma casa, mas tinha a chave da casa dos outros. Ela poderia adormecer na cama de quem quisesse, mas preferia a terra que viria a umedecer-se pelo orvalho. Também não podia se permitir pensar no que abandonara: o dia seguinte não lhe traria algodão-doce em terra de circo. O dia seguinte deveria lhe dar chaves.
   Ouviu o grito estridente de sacrifício ao longe. Foi o suficiente para que travasse o andar e fechasse os olhos. Visualizou a lâmina deslizando funda pela pele fresca. Do queixo ao umbigo. A escuridão aparecendo em gotas encarnadas para o mundo. O cheiro doce de sangue.
   Salivou.
   Hesitou o silêncio, para que o vento trouxesse, por trás dela, uma voz feminina sussurrando seu nome.

   E quando alguém acertava o seu nome, era hora de partir.