domingo, 28 de dezembro de 2014

Capítulo I


   Ao entardecer, as lamparinas começavam a acender suas luzes fracas em torno dos trilhos abandonados. Tudo o que era movimento acabou por se esconder atrás do matagal alto e amarelado para manter a sobrevivência naquele lugar.
   Nem tão longe dali, pequenas casas seguiam o trajeto acompanhando a via férrea. Certamente houveram moradores ali, mesmo que já não fossem tão visíveis... Pelas janelas engorduradas, flores murchas em tarros de água suja. Trancas. Correntes. O desespero de perder o nada.
   Do outro lado, o barulho dos cascalhos sendo maltratados pelo pisar grosso das botas da Pequena Ladra que chegava. Os bolsos tilintando o choque das chaves roubadas na vila. Os olhos roxos lhe denunciavam o que havia feito. Quarenta e seis. Era considerado pecado. Continuaria fazendo. 
   Os lagartos cruzavam seu caminho e só então ela sorria. Eles eram iguais ela, mas com um propósito diferente. Cada um rouba o que bem entende pela importância que quer dar.
A Pequena Ladra não tinha uma casa, mas tinha a chave da casa dos outros. Ela poderia adormecer na cama de quem quisesse, mas preferia a terra que viria a umedecer-se pelo orvalho. Também não podia se permitir pensar no que abandonara: o dia seguinte não lhe traria algodão-doce em terra de circo. O dia seguinte deveria lhe dar chaves.
   Ouviu o grito estridente de sacrifício ao longe. Foi o suficiente para que travasse o andar e fechasse os olhos. Visualizou a lâmina deslizando funda pela pele fresca. Do queixo ao umbigo. A escuridão aparecendo em gotas encarnadas para o mundo. O cheiro doce de sangue.
   Salivou.
   Hesitou o silêncio, para que o vento trouxesse, por trás dela, uma voz feminina sussurrando seu nome.

   E quando alguém acertava o seu nome, era hora de partir.

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