domingo, 22 de fevereiro de 2015

Capítulo IX



   O trem corria. O barulho metálico explodia nos tímpanos dos dois. O estofado vermelho brilhava o cheiro de novo. A Pequena Ladra estava feliz e se sentia segura - pelo tempo da viagem, ao menos.
   Desacelerando, o trem parou. Não sabiam onde estavam. A mocinha pegou para ler um jornal que o passageiro anterior esquecera ali. Enquanto isso ocorria o desembarque. E depois o embarque. Logo que o trem retomou sua ânsia por distâncias, entrou na cabine uma jovem mulher, morena, risonha, não muito bonita.
   - Quem é? - perguntou o Homem Cego, apreensivo.
   - Calma, senhor! Eu sou apenas...
   - Outra passageira qualquer. - Interrompeu a Pequena Ladra.
   - Ah, mocinha, não seja mal-educada! Deixe que ela se apresente, certo?
   A Pequena Ladra soltou um muxoxo e pegou o jornal novamente. Não sabia ler, mas aquelas palavrinhas miudinhas talvez fizessem sentido tanto quanto suas engrenagens. Abaixou a cabeça e manteve os olhos distantes. Enquanto isso, o Homem Cego conversava com a Nova Passageira. Ela contou que fugira de sua família para viver um romance um jovem moço, mas que ele não a fez feliz e que, por isso, estava voltando para casa de seus pais. Que torcia que eles a aceitassem. E ela ria... Quase que desesperadamente.
   O Homem Cego nada dizia. Estava ficando enjoado com a voz daquela mulher, mas não seria polido de sua parte pedir que calasse a boca.
   - Ela é sua filha? - perguntou a Nova Passageira sobre a Pequena Ladra para o Senhor Cego.
   - Não. Na verdade, ela é uma...
   - Não lhe interessa. - Interrompeu novamente a mocinha, ainda escondida atrás do jornal. - Eu sou um monte de coisas e acho que você não precisa saber. O que quer provar contando essas histórias todas? Por que você só não fica quieta e desfruta do silêncio? É tão bom o silêncio!
   Constrangida, a Nova Passageira suspirou breve e calou-se.
   - Isso não foi bonito, mocinha... - Repreendeu o Homem Cego.
   - Ah, cala a boca, você também!

   A Pequena Ladra fechou os olhos e dormiu todas as dores que aquela viagem lhe causava. Pela primeira vez, alguém cuidava dela e a queria bem. Mas se questionava se precisava daquilo. Qual era a dificuldade das pessoas de aceitarem o silêncio?

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Capítulo VIII



A Pequena Ladra e o Homem Cego tentavam descobrir o segredo para abrir a porta no chão. Não haveria motivo para haver uma maçaneta ali se não houvesse uma porta atrás dela. Já era quase dia, mas eles não tinham mais fome. Percorreram uma longa trilha de árvores frutíferas e isso foi suficiente.
Não sabiam o que fazer, mas tinham que fazer algo. Tinham que dar um jeito! A mocinha começou, então, a bater com a sola da bota naquele chão de vidro.
- O que tem aí? - questionou o Homem Cego.
- É um círculo. Um círculo de vidro. No meio, há uma maçaneta. Parece um relógio.
- Então temos que localizar os ponteiros!
A Pequena Ladra tomou distância e fitou com atenção aquele lugar. Percebeu que a maçaneta estava direcionada para onde o Sol se punha, mas isso poderia não significar nada. Também percebeu que havia mais areia acima e abaixo da maçaneta, e, possivelmente, isso era desigualmente importante. Voltou para o centro do círculo e repetiu o ato de pisar forte. Queria quebrar. Foi quando a mão do Homem Cego repousou em cima de sua cabeça com cautela. Deveria mesmo haver uma forma mais delicada de resolver aquilo.
O Homem Cego abaixou-se e ficou tocando a maçaneta enquanto a Pequena Ladra percebia que ele ainda possuía resquícios de sangue no rosto. Com isso, ela tocou o seu próprio rosto, tentando entender as engrenagens que a acompanhavam e se questionou se era por esse motivo que aquele homem tão carinhoso havia furado seus próprios olhos.
- Descobri! - gritou o Homem Cego. - Neste ponto - disse apontando para o lado esquerdo da maçaneta - há uma linha comprida. É o ponteiro dos minutos. E mais ali - apontou, então, para o lugar acima da maçaneta - há um traço mais grosso e curto. É o ponteiro das horas. São onze horas e quarenta e cinco minutos.

- E daí?

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Capítulo VII


Já era noite feita e lá estava a Pequena Ladra em frente ao banco onde deixara o Homem Cego com sua cartola. Atrasada em muitas horas. Ali, parada em frente àquele que havia suicidado sua visão, manteve-se em silêncio. Ele havia esperado a mocinha e ela não acreditava. Não entendia porque alguém podia querer esperar pela sua presença.
O Homem Cego “olhava” para os lados com certa impaciência, como que procurando a menina que não chegava nunca, mas que estava lhe observando a poucos passos. Atordoada por aquela cena e engolindo algumas lágrimas fugitivas, resolveu fazer sua voz ecoar algum som frente àquela ausência de.
- Você ficou me esperando... - engasgou.
- Mocinha! Você finalmente chegou! Já amanheceu?
Envergonhada, não queria dizer-lhe que demorara muito tempo a mais, embora não planejasse mentir para aquele homem.
- Perdi o amanhecer, senhor. Dormi demais e me atrasei.
- Ah! - exclamou - não tem problema... Eu só estou com fome e...
- Você não vai procurar sua família? - interrompeu a Pequena Ladra.
- Perdi a chave de casa.
A Pequena Ladra colocou a mão em seu bolso, mas não tinha como adivinhar qual daquelas pertencia ao Homem Cego.
- Eu realmente estou com fome. - repetiu.
A Pequena Ladra poderia esperar amanhecer novamente para tentar roubar algum pedaço de pão da padaria não muito longe dali... Mas seriam horas longas e não tinha tempo. A Mulher Ruiva viria buscá-la e ela não poderia esperar.
- O senhor tem medo do escuro?
- Se eu tivesse, estaria desesperado nesse momento, não é? - disse, apontando para os olhos.
- Tenho um lugar onde podemos ir. Não é aqui na cidade. Deveremos encontrar comida... Ou, senão, podemos mastigar a grama. Faço isso há anos e estou viva! Vês?
Em um segundo, a Pequena Ladra deu-se por conta que repetira o erro de esquecer que o Homem Cego não podia mais enxergar.
- O que você vê?

- Eu não sei. - disse ele colocando a cartola na cabeça e se erguendo do banco.